domingo, 17 de setembro de 2006

Realidade Virtual - Datilografado/sem data



Considerações sobre a Realidade Virtual


Laymert Garcia dos Santos


Esta mesa sobre Realidade Virtual se inscreve num seminário que tenta pensar a sociologia no horizonte do século XXI. Para tentar ser fiel a ela, e ao seminário, creio que talvez fosse preciso invocar a sociologia da tecnologia, isto é, a sociedade do universo das máquinas que intermedeiam as relações dos homens contemporâneos entre si e com a natureza, universo tão abrangente e presente que chegou a ser chamado de segunda natureza. Mas para indagar como a sociologia da tecnologia pode abordar a Realidade Virtual no horizonte do século XXI, talvez seja melhor começar perguntando se o aparecimento de tal realidade tecnológica não afeta a própria noção de horizonte. Antes mesmo que uma disciplina procure compreender essa realidade no campo do saber, parece-me que deveríamos tentar como a Realidade Virtual irrompe na realidade, deslocando horizontes.


Todos sabem que a Realidade Virtual é um resultado, já não tão experimental, da interação homem-computador. Como diz John Walker: "Estamos no limiar da próxima revolução na interação usuário computador: uma tecnologia que levará o usuário através da tela para um mundo "dentro" do computador, um mundo no qual o usuário pode interagir com objetos tridimensionais cuja fidelidade vai aumentar a medida em que cresce a potência de computação e progride a tecnologia de visualização. Esse mundo virtual pode ser tudo o que o designer fizer".


A realidade virtual é, portanto, a geração de um mundo a partir de uma relação homem máquina. Um mundo criado artificialmente que o usuário, depois, pode "habitar". No início, apenas mentalmente... E visualmente; mas a meta é envolver todos os sentidos -- como na relação sexual virtual que, há dois ou três anos, uniu Timothy Leary e uma japonesa num coito eletrônico, em que Thimothy se encontrava na Califórnia e sua parceira em Tóquio. A meta é permitir que nesse mundo criado artificialmente se possa gozar, sofrer, amar, sonhar, além de pensar. Um mundo alternativo.


O Mundo de Mariko Ito, de 32 anos, moradora de Tóquio, usuária de Habitat, essa cidade japonesa de 10 mil habitantes, que não se encontra no mapa, porque é uma cidade virtual fabricada pela Fujitsu e lançada na rede Nifty-Serve, em 1990. Makito Ito "vai" ao Habitat ciberespacial, por uma ou duas horas, todos os dias, porque, diz ela é "fantástico. Lá posso ser outra pessoa". Lá Makito pode escolher sua aparência, sua roupa e seu sexo, optando entre 1.100 rostos possíveis, depois de ter-se registrado em avatar, ou residente.


Atravessando o espelho da tela, e entrando, do outro lado, no mundo ciberespacial, Makito torna-se um avatar, isto é, uma reencarnação, ou uma metamorfose. Parece ficção, mas é realidade virtual. Com que parâmetros, então considerar tudo isso?


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A ficção científica pode ser de grande valia para entender o que se passa no mundo da Realidade Virtual, se lembrarmos do que diz Philip K. Dick. Num texto instigante, intitulado "minha definição sobre ficção científica", o mestre do gênero se pergunta sobre o que ela pode ser: "Antes de tudo, temos um mundo fictício; uma sociedade que não existe de fato mas que é decorrente de nossa conhecida sociedade -- isto é, nossa conhecida sociedade atua como um ponto de partida para ela; de certo modo, a sociedade evolui a partir de nós mesmos., talvez ortogonalmente como ocorre na estória ou novela do mundo alternativo. É o nosso mundo deslocado por algum tipo de esforço mental do autor nosso mundo transformado naquilo que não é, ou ainda não é. Tal mundo deve diferir de algum modo do mundo dado e esse modo precisa poder suscitar acontecimentos que não ocorreriam em nossa sociedade __ ou em nenhuma sociedade conhecida do pressente e do passado. Deve haver uma idéia coerente envolvida no deslocamento; isto é, o deslocamento deve ser conceitual, não trivial ou estranho -- essa é a essência da ficção científica, aquele deslocamento conceitual dentro da sociedade que faz com que uma nova sociedade seja gerada na mente do autor, transferida para o papel, e a partir do papel se dê como um choque convulsivo na mente do leitor, o choque do desreconhecimento".


O ouvinte ( Leitor: Nota do A.) me perdoe tão longa citação; mas ela pareceu-me indispensável para nomear a operação que a existência da Realidade Virtual nos leva a fazer. Definindo a Ficção Científica, Philip K. Dick descreveu um processo muito semelhante ao da criação do mundo da Realidade Virtual; e ao mesmo tempo, ao explicar porque o deslocamento conceitual é a essência da Ficção Científica, ensinou como captar esse mundo: Registrando o choque do desreconhecimento e atentando para a diferença entre o nosso mundo e o mundo ciberespacial.


A realidade Virtual existe como uma espécie de mundo alternativo povoado por avatares. Aceitar tal premissa já é sentir o impacto, o choque do desreconhecimento; de repente é como se tivéssemos voltado a ser homens primitivos, acreditando em mundos paralelos. O superego reage, insistindo que isso é alienação; mas se nos submetêssemos à injunção do superego, e desqualificássemos nossa percepção, perderíamos a oportunidade de explorar o mundo ciberespacial em sua diferença. Assim, em vez de descartar o estranhamento, talvez seja melhor suspender o julgamento e se entregar ao deslocamento conceitual.


Suponhamos então que o mundo da realidade virtual é um mundo de ficção científica, que está se concretizando como mundo paralelo dentro do nosso. O que isso pode significar? Primeiro, que a boa ficção científica pode, na verdade, ser literatura de antecipação; e segundo, que a antecipação na ficção científica corresponde ao modo como o processo tecnológico se dá inicialmente durante a fase da invenção, antes de se concretizar de todo e passar a se incorporar enquanto realidade incontornável. Com efeito, tudo se passa como se a invenção literária da ficção científica e a invenção tecnológica da Realidade Virtual obedecessem a dinamismo análogos de antecipação, só diferenciando-se em seus modos de expressão


-- pois ambas realizam um condicionamento do presente pelo futuro, pelo que ainda não existe. Ambas operam uma influencia do virtual sobre o atual. Como afirma o filósofo das técnicas Gilbert Simodon, "A invenção é uma apropriação do sistema da atualidade pelo sistema das virtualidades, a criação de um sistema único a partir desses dois sistemas.


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O mundo alternativo da realidade virtual não é, no entanto, o primeiro mundo fictício inventado pela tecnologia. Comentando o impacto da mídia sobre a sociedade contemporânea, Gianni Vattimo, em "A sociedade transparente", observa que a proliferação de fantasmagorias pelo cinema, TV, rádio e vídeo suscitou uma tal erosão do próprio "princípio de realidade", que hoje para nós, a realidade é mais o resultado do cruzamento da contaminação das imagens, das interpretações, das múltiplas reconstruções que a mídia distribui. Portanto, antes mesmo que o mundo alternativo da realidade virtual adviesse, o princípio de realidade entrara em crise -- como se fosse necessário primeiro explodir a visão do mundo em múltiplas visões de mundo; e só num segundo momento fazer surgir a Realidade Virtual, como uma ampliação da realidade.


O fato é que no mo o mundo fictício da mídia, o mundo alternativo da realidade Virtual está se instalando no mundo, e se infiltrando entre nós e o mundo. Mas em vez dele aterrissar em nosso espaço, como imagens da televisão, muito ao contrário parece que somos nós que mudamos de dimensão.... e, ao mudarmos, mutamos. Por enquanto só uns pouco privilegiados como os usuários da INTERNET e os freqüentadores dos cafés da moda, em Paris, que se encontram para partirem em "viagem" virtual a bordo de seus visores; mas quando milhões de consumidores do mundo inteiro tiverem acesso a essa tecnologia, a mutação deixará de se constituir em exceção, para tornar-se norma. E a realidade virtual vai tornar-se uma realidade para muita gente. A pergunta que se coloca então é: Como vai ficar a nossa velha realidade, a realidade de nosso espaço habitual, em permanente contacto com a realidade virtual, a realidade do ciberespaço?


O Escritor de ficção científica William Gibson, que inclusive cunhou a expressão ciberespaço, mostra, em Neuromancer e Virtual Light, a profusão de espaços e tempos que se sucedem e se alternam quando a mente e corpo passam a experimentar a mudança de dimensão. A relatividade do espaço-tempo se impõe na experiência quotidiana, e com ela, uma grande mudança de perspectivas. Se podemos ser "outra pessoa", como diz Makito Ito, e se podemos ser tantas outras pessoas quantas quisermos, teremos perspectivas diferentes. E quem poderá afirmar que uma delas é mais adequada para a apreensão da realidade? Quem poderá garantir que esta é mais realista do que outra? Em nome de que?


A apropriação do presente pelo futuro, está nos transportando para um espaço tempo relativo, espaço tempo da invenção. Agora já em diferentes dimensões. A realidade ampliada desloca nossa realidade habitual, relativiza-a, abrindo-nos possibilidades novas -- que podem se boas ou ruins, mas serão certamente diferentes do que já experimentamos.


A relatividade do espaço tempo da experiência quotidiana mina as nossas certezas a respeito da validade dos critérios a partir do qual nos guiamos. O mundo atual passa a ser tão real quanto o mundo virtual? Ou é o mundo virtual que passa a ser tão real quanto a atual? A questão nos encerraria numa reflexão infinita, tão infinita quanto a imagem de dois espelhos colocados frente a frente. A questão está mal colocada, porque polariza os mundos e só os diferencia negativamente, subordinando a realidade de um ao do outro. Na verdade, se pensarmos que o mundo atual e o mundo virtual são como dois tempos diferentes que se tornam contemporâneos, encontraremos um novo prisma a partir do qual; procuraremos entender o advento da Realidade Virtual: entre o presente e o futuro. Nesse intervalo, a partir dele, talvez seja possível captar o sentido da transformação.


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Tudo se passa como se, graças ao fantástico desenvolvimento da tecnologia, nosso velho mundo atual estivesse sendo progressivamente abandonado em troca do mundo da Realidade Virtual. A crônica das aplicações a eletrônica, da informática e das telecomunicações é um registro dessa espécie de transferencia que setores inteiros da produção e da vida social; estão empreendendo rumo ao ciberespaço. Cada vez mais empresas e indivíduos lidam com dados, informações e imagens que circulam pelas redes e fazem disso sua atividade principal. Mas, excluindo-se os militares, nenhum setor da sociedade instalou-se tão intensamente no ciberespaço quanto o setor financeiro. A própria unificação dos mercados num mercado global não poderia ter ocorrido sem o desenvolvimento das tecnologias da informação.



O sistema financeiro internacional mudou-se para o ciberespaço, e, talvez seja por isso que o mundo esteja sofrendo de grande instabilidade financeira. Diversos indícios apontam nessa direção. Antes de mais nada, cabe salientar que a transferencia se manifesta mais visivelmente como desinteresse pela produção material e desistência do investimento produtivo: em cada 70 dólares que trocam de mãos nos mercados cambiais globais, só um paga por um comércio de bens e servidos; muitas das maiores transações são especulativas: é que os investidores tentam tirar vantagens de pequenas diferenças nas taxas de cambio ou de pequenas diferenciais nas taxas de juros, medidos em frações de percentagens de ponto. Por isso há especialistas pensando que a circulação do chamado Hot Money 24 horas por dia nas redes digitais determina muito mais o valor das moedas nacionais do que os desequilíbrio comerciais.


Outro indício a assinalar a transferencia do sistema financeiro para o ciberespaço é a contratação de doutores em matemática e até astrofísicos que chegam a ganhar 1 milhão de dólares por ano para produzirem os chamados derivativos produtos financeiros vendidos nos mercados futuros por bancos, fundos e corretoras que especulam com moedas, bônus e ações. Na verdade, como observa John Plender, os derivativos não são comerciados num mercado real: "Não há um mercado real. Há em seu lugar, complexas valorações feitas por computador baseados em conjecturas sobre probabilidades, volatilidade e custos futuros".


O mega especulador George Soros, que em 1992 ganhou bilhão de dólares apostando contra a libra, explica em seu livro "The alchemy of finance - reading the mind of the market", concebe o mercado financeiro e porque tem tanto sucesso nele. "(...) minha abordagem tem mais êxito na lida com o s mercados financeiros do que com o mundo real. A razão se explica per si própria: Os mercados financeiros funcionam imperfeitamente como um mecanismo para a predição de acontecimentos no mundo real. Sempre há uma divergência entre as expectativas prevalecentes e o curso real dos acontecimentos. O sucesso financeiro depende da habilidade de antecipar as expectativas prevalecentes e não os desenvolvimentos no mundo real. Mas (...) minha abordagem raramente produz predições firmes até mesmo sobre o curso futuro dos mercados financeiros; ela é uma moldura para entender o curso dos acontecimentos quando eles se desdobram. Se ela tem alguma validade, é porque a moldura teórica corresponde ao modo como os mercados financeiros operam. Isso significa que os próprios mercados podem ser considerados como formulando hipóteses sobre o futuro então submetendo-as ao teste do curso real dos acontecimentos.


As hipóteses que sobrevivem ao teste são reforçadas; as que fracassam, são descartadas. A principal diferença entre os mercados e eu, é que os mercados parece se enganjar num processo de ensaio e erro sem que os participantes tenham entendido complemente o que está ocorrendo, enquanto eu o faço conscientemente. Talvez seja por isso que minha performance é melhor do que a do mercado".


O comentário de soros deixa evidente o deslocamento do sistema financeiro e a transformação do mercado financeiro global num gigantesco cassino, onde quem ganha não é quem consegue prever o que vai acontecer, mas sim antecipar as expectativas que vão prevalecer face ao desenrolar dos acontecimentos. Por isso, a industria dos derivativos é o reino dos modelos e das simulações cujas arquiteturas são tão complexas que as vezes nem mesmo o designer tem completa certeza dos riscos envolvidos para o comprador ou para o vendedor. Um exemplo do grau que essa complexidade pode alcançar é o invocado pelo brasileiro Flavio Bartman, uma das estrelas da corretora Merril Lynch em Londres: o ponto alto de sua carreira até agora foi justamente a elaboração de uma proposta recomendando a uma outra instituição financeira a criação de uma unidade para negociar derivativos. A proposta, que procurava demonstrar através de gráficos, regressões e fórmulas matemáticas os riscos de diferentes portfólios em diferentes cenários, foi executada por uma rede de 32 computadores trabalhando durante uma semana para fazer os cálculos. Capital, quadros de tecnologia não faltam p[ara a elaborações de modelos, simulações e cenários para a industria de derivativos; como diz Leo Melammed, o pai fundador dos mercados financeiros futuros de Chicago, "fora das trocas formais o espaço para crescer só é limitado pela imaginação".


A indústria dos derivativos se desenvolveu na década de 80, em resposta a dois dos maiores problemas dos bancos: a perda de clientes das grandes corporações depois da crise da dívida do Terceiro Mundo ao golpe na lucratividade de seus negócios tradicionais em virtude da globalização dos mercados, da rápida mudança tecnológica e da desregulamentação financeira em todo o mundo. É o que dizem os especialistas, esquecendo-se, porém, de acrescentar que a fusão da informática com as telecomunicações viabilizou a unificação e a homogeneização do espaço econômico global, e que só a partir de então foi possível esquadrinhar eletronicamente esse espaço e nele rastrear os riscos e recursos que possam gerar valor.


Através da indústria de derivativos, o sistema financeiro global despede-se do mundo atual e ruma para o mundo virtual, o mundo futuro, da invenção e da antecipação. Como se a riqueza estivesse abandonando a matéria e a energia, passando a valorizar eminentemente a informação. Informação que deve ajudar a decifrar o futuro dos mercados e, em conseqüência, contribuir para a tomada de decisões no presente. De modo significativo, escreve McKenzie Wark, os mercados futuros se desenvolveram primeiro para mercadorias agrícolas, e mais recentemente para instrumentos financeiros e títulos. O primeiro é o produto da natureza transformado num fluxo de mercadorias abstratas, quantificadas; o segundo é o produto do capital transformado num fluxo de informação abstrata, quantificada. O primeiro ocorre quando o mapeamento do mercado chega a cobrir o território, o segundo quando o mapeamento suplanta o território e o subordina ao mapa.


É interessante notar que essa transferencia para o ciberespaço coincide com a crise da dívida do Terceiro Mundo. Parece até que esta favoreceu a o surgimento da indústria de derivativos. Com efeito, a crise da dívida foi "resolvida" convertendo-a em um novo tipo de mercadoria, um comodity abstrata que pode ser negociada sob a forma de papeis, cuja existência de certo modo independe de suas conexões com projetos e ativos da esfera econômica. Mas não era só a dívida que poderia ser "securitizada", para usar o jargão dos especialistas; no limite, qualquer forma de crédito pode sê-lo porque qualquer forma de crédito é antecipação de um processo por vir. Sob a forma de títulos, que os anglo saxões denominam "seguranças" segurities, a antecipação da dívida e do futuro passou então a ser negociada.


Ora, como observa McKenzie Wark, um título desses é num certo sentido, a mais abstrata, a mais desmaterializada das mercadorias. Seu grau de abstração, e daí sua utilidade, repousa por um lado em seu caráter negociável, e por outro em sua segurança. Esta é sua estranha tensão: a security deve ser ancorada ao máximo em ativo tangíveis na esfera econômica e ao mesmo tempo negociável na esfera ciberespacial. Quanto mais líquida e segura é a security, mais ela pode ser prontamente negociável nos mercados; quanto mais liquida e segura maior e o valor de uso, o valor de uso particularmente abstrato da segurança e da permutabilidade. Wark conclui: "Pode-se dizer que esta é a mercadoria pos-moderna por excelência, pois sua utilidade consiste apenas na sua possibilidade de ser negociada por alguma outra coisa. Uma mercadoria cujo derradeiro valor é ser um outro valor".


Nas telas dos computadores, as posições dos derivativos mudam a cada minuto, o futuro modelando o presente. A evolução dos valores reflete evidentemente os riscos e recursos que transitam no espaço econômico, no mundo das mercadorias; mas reflete tão ou mais, o que se passa nas redes digitais porque estas produzem uma imagem dos mercados em constante mutação, imagem que por sua vez afeta os valores dos papeis ao permitir a imediata comparação da performance de cada um com a de todos os outros, suscitando reavaliações, depreciações e valorizações.


Nas telas dos computadores a imagem dos mercados vai estampando a contínua construção de uma outra espécie de mercado, o mercado ciberespacial, que atrai cada vez mais os capitais do mundo inteiro, lá onde se organiza em função das exigência da imagem. De tal modo que o mercado não é mais aquele espaço onde os valores foram criados e negociados, é este outro espaço no qual os valores foram transferidos de uma percepção a outras. Como escreve Wark, "é propriedade privada numa forma mais pura, destacada da substancia tangível, sensível, material, propriedade sem propriedades. É a propriedade privada mais fácil de ser privatizada porque lhe falta a forma substancial natural ou feita pela máquina.


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Soros portanto está certo ao concentrar seu olhar arguto sobre as expectativas que vão prevalecer, quando as telas dos computadores desenrolarem a imagem da evolução do mundo econômico real. Para ganhar, o especulador tem de ser especulativo, tem, de interrogar a imagem e compreender o ponto de vista que ela suscita em relação ao real. -- Método que Soros denomina "Teoria da Reflexividade".


Os valores foram transferidos de uma percepção a outra. Doravante é preciso compreender essa diferença. O capitalismo passa a privilegiar o imaterial, e o que é simbólico como se diz, torna-se economia sublime. E isso faz toda a diferença. Não é atoa que a característica principal do mercado financeiro global é a volatilidade, por todos reconhecida e temida, e da qual já deram mostras o crash nas bolsas de 87, a evaporação de mais de seis bilhões de dólares no ano passado... e agora a crise no México. Na transferência de valores de uma percepção para outras, a riqueza se volatilizou ao passar a ser informação.


É preciso ir a New York, a Londres ou a Tóquio para se ter uma idéia de como a volatilização da riqueza afeta a vida das pessoas e das cidades. Quem nelas mora, trabalhando ou não (porque o desemprego e o subemprego são crescentes), vive nesse intervalo entre o futuro e o presente, entre o espaço virtual e o espaço real, por onde circula a riqueza em vias de volatilização. Vive-se no intervalo, mas de modo diferente, segundo se está em Wall Street, ou debaixo da ponte em Brooklyn. Global City, o livro de Saskia Sassen sobre a ruptura que se está operando nessas três cidades a partir da hegemonia do mercado financeiro global, é um ótimo registro da precariedade que está tomando conta do mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que a instabilidade toma conta do mundo do capital.


Embora começasse considerando o processo sob uma perspectiva urbana, Sassen logo percebeu que a óptica deveria ser no mínimo interurbana, isto é, procurasse enfocar a questão não do ponto de vista do chão mas do satélite ou, melhor ainda, da rede digital. Vistas de lá, New York, Londres ou Tóquio se mostram de modo muito diferente, como cidades que tendem a se transformar na cidade global. Nesta, cada uma das cidades se especializa num dos três grandes momentos que pontuam a realização dos investimentos globais: Tóquio, emerge como principal centro de exportação de capital; Londres, como principal centro de processamento, através dos euromarkets e de sua vasta rede de bancos internacionais, ligando a cidade à maioria dos países; e finalmente New York, emergiu como o principal receptor de capital, centralizando as decisões de investimentos e a produção de inovações que podem maximizar a lucratividade. A cidade global é portanto, uma cidade no ciberespaço geográfico; e, como tal, vive num espaço tempo relativo no qual o que acontece no horário comercial local é sempre referido ao que acontece no horário comercial dos outros centros, fazendo com que o capital, como as informações, gire e se transforme 24 horas por dia.


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Nosso velho mundo atual está sendo progressivamente abandonado pelo mundo da realidade virtual. Transferindo os valores de uma percepção para outra, o sistema financeiro global mostrou que se transferiu para o ciberespaço. Os demais setores já procuram acompanhar, tentando acessar o mundo alternativo. Quando não só nossas mentes, mas também nossos corpos começaram a experimentar quotidianamente a mudança de dimensão, talvez descubramos que, sem perceber, já estávamos vivendo numa outra sociedade.



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