domingo, 17 de setembro de 2006

Do Calor da Utopia à Frieza da Ciência - Datilografada


O calor da utopia e a frieza da ciência

(Leandro Konder - sem data/datilografado)

Qual poderá vir a ser o papel das utopias no começo do próximo milênio?
Qual espaço lhes será reconhecido pela produção cultural?
Que funções assumirão o pensamento político
?

Uma primeira dificuldade com que nos defrontamos ao tentar responder a essas questões, tem a ver com o conceito de utopia. Os autores que se servem do termo não lhe conferem o mesmo sentido, não lhe atribuem a mesma acepção. Utopia é sem dúvida, o "não lugar", o lugar inexistente. Mas é um lugar destinado a permanecer sempre fora do nosso alcance, falando à nossa imaginação. Ou se trata de algo que ainda não existe, porém pode vir a se concretizar em decorrência de nossas ações? Em que medida utopia é um sonho irrealizável e, a partir de que ponto passa a ser o sinal de uma realização possível ?

A história da utopia como gênero literário começa com uma obra que manifesta a ambigüidade inerente às construções utópicas: A Utopia de Thomas Morus, é ao mesmo tempo, a expressão de um vigoroso inconformismo e de uma insuperável sensação de impotência. Em suas páginas se acha a denúncia da exploração classista na Inglaterra do renascimento, se encontra o aceno a uma possível sociedade sem propriedade privada, mas se acha também a idéia resignada de que essa sociedade mais justa seria uma sociedade altamente autoritária, rigidamente hierarquizada e baseada no trabalho escravo. A comunidade idealizada da ilha da Utopia cobrava um preço altíssimo pelo bem-estar e pela segurança de seus cidadãos, imiscuindo-se em suas vidas privadas, impondo-lhes normas de conduta que determinavam até o tipo de roupa que deveriam usar.

Um século depois da Utopia, de Morus, foram escritas duas fantasias inequivocamente inspiradas por ela: A Nova Atlântica, de Francis Bacon, e a Cidade do Sol, de Tammaso Campanella. Em ambas, volta a se manifestar a ambigüidade intrínseca da utopia como gênero. Por um lado a profunda insatisfação com a situação existente, com a organização da sociedade, com ideologia dominante e pensamento institucionalizado; por outro lado, a reprodução de critérios comprometidos com a ideologia contestada e com a estreiteza de horizontes da sociedade que estava sendo recusada.

No início do século XIX, as situação já era bastante diversa daquela que se manifestava na Utopia do século XVI, e nas utopias do século XVII. No processo em que se preparou e desencadeou a chamada revolução industrial, constituiu-se uma nova classe social formada por uma massa de trabalhadores urbanos reunidos em manufaturas ou em fábricas. E essa massa proletária, com sua presença compacta, acabava por influir nos caminhos da imaginação de alguns intelectuais.

O conde Henri de Saint-Simon, se preocupava com os trabalhadores. Impressionado com o que pode observar nos Estados Unidos da América do Norte (então em formação), o aristocrata pregava reformas que deveriam criar na França uma sociedade sem ociosos, com todos os cidadãos trabalhando animada e por um incessante progresso tecnológico. Em seus últimos anos de vida, o inquieto pensador francês atribuía utopicamente a um renascimento do espírito do cristianismo primitivo a tarefa de arregimentar os operários e as mulheres, em aliança com os comerciantes e banqueiros, para reformar os costumes e as instituições.

Outro francês, Charles Francois Fourier, discordava de seu compatriota; para ele, a sociedade não poderia sofrer nenhuma transformação realmente profunda por meio de movimentos religiosos ou através de revoluções políticas. Decepcionado com a estreiteza da revolução francesa, Fourier dedicou suas energias à concepção de um "falanstério", de uma comunidade ideal, instalada num lugar adequado para 1.800 pessoas, que demonstraria na prática aos seres humanos em geral como eles poderiam viver melhor, num quadro de relações mais justas e desfrutando de maior felicidade. Para Fourier, as grandes vítimas da civilização -- os operários e as mulheres -- deveriam constituir uma vanguarda na realização das mudanças.

Os anseios de progresso e operosidade, o sentimento de revolta contra o parasitismo, a insatisfação relativa às terríveis condições de trabalho e remuneração, a falta de uma perspectiva imediata de melhoras significativas, tudo isso tornava a massa trabalhadora receptiva ao sonho de uma nova vida. E as expectativas e aspirações desse recém formado proletariado industrial estimulavam as utopias de Saint Simon e de Fourier a se inserirem, muito mais resolutamente que as de Morus, Bacon e Campanella nos esforços de numerosos homens empenhados em fazer história. Nessas condições, no início do século XIX, as novas utopias, mais do que apontar para uma nova possibilidade no espaço (um "não lugar"), apontavam para uma nova possibilidade no tempo: Uma sociedade ideal futura.

Na passagem da primeira para a segunda metade do século XIX, tornou-se cada vez mais marcante a ação de Marx e Engels, que propunham idéias diferentes das de Fourier e Saint Simon. Marx e Engels consideraram as utopias como expressões legítimas dos anseios nascentes do socialismo moderno, mas também como manifestação de imaturidade. Para eles, o socialismo precisava ser mais "realista" e se apoiar em conhecimentos mais sobriamente "científicos". Engels, chegou a fazer imenso sucesso com um texto de sua autoria intitulado: "Do socialismo Utópico ao Socialismo Científico".

Os dois pensadores alemães conseguiram, de fato, substituir na consciência de muitos ativistas do movimento operário, algumas fantasias ingênuas e sonhos românticos por concepções mais eficazes no plano das atividades, do trabalho organizativo e das reivindicações e lutas. Coube-lhes o mérito de limitar as conseqüências dos ímpetos utópicos nos exageros de uma denúncia "desmoralizadora" da burguesia (reconhecendo o vigor da atuação da classe burguesa nas modificações da sociedade) e, ao mesmo tempo, ambos tiveram a lucidez de indicar para o movimento operário e as ações das massas caminhos praticáveis, ao longo dos quais os próprios trabalhadores poderiam ir se desenvolvendo, aprendendo a identificar e avaliar seus adversários, negociando com eles e enfrentando-os em condições mais vantajosas.
Cometeríamos uma rematada insensatez se ignorássemos as vantagens conquistadas pelo ponto de vista de Marx e Engels em relação aos pontos de vista de Saint Simon ou de Fourier. Devemos contudo, tomar cuidado para não acreditar que, em decorrência dessas vantagens, a posição "científica" de Marx e Engels eliminou como supérfluo ou totalmente contraproducente a utopia do socialismo.

Para percebermos a persistência de elementos utópicos no próprio Marx, basta atentarmos para as características do "comunismo", tal como ele o concebe: Uma sociedade sem estado, sem fronteiras, sem classes sociais, sem divisão entre cidade e campo, sem divisão entre trabalho físico e trabalho intelectual; uma sociedade na qual a moral absorve o direito e as necessidades religiosas desaparecem da alma dos homens. Quem hoje em dia ousaria sustentar, impavidamente, que não há nada de utópico nessa concepção de "comunismo"? Quem negaria o cheiro da utopia na idéia de que no comunismo não haverá especialização profissional e cada pessoa no seu quotidiano poderá ser alternadamente médica, astrônoma, pintora, pescadora, etc ?

Em sua maioria os principais dirigentes e ativistas do movimento socialista de inspiração "marxista" no final do século XIX e na primeira metade de século XX, não levaram em conta essa persistência da dimensão utópica na perspectiva dos geniais fundadores do "socialismo científico". A literatura dos "marxistas" produzida ao longo desse período, com raras exceções, não manifesta muita sensibilidade em relação à utopia.

Os "marxistas" herdaram de Marx a convicção de que a utopia, por um lado, fortalecia a inumanidade do presente, mas, por outro, atrapalhava os esforços dos lutadores para identificar os focos de resistência à mudança e para combater os inimigos concretos do projeto transformador. Segundo Marx, a utopia, a partir de um certo momento, passava a acarretar uma subestimação das tarefas que os ativistas políticos precisavam executar para articular os movimentos dos vários setores da sociedade.

Ao retomarem a desconfiança de Marx em face dos utopistas, entretanto, os "marxistas" se defrontam com circunstancias históricas que se tornavam cada vez mais diferentes daquelas em que o autor do Capital elaborava seu pensamento altamente original. Os "marxistas" eram levados a inserir sua condenação à utopia num sistema codificado (o "marxismo"), julgando-a de acordo com os postulados de uma doutrina constituída. Em Marx, a avaliação das ambigüidades da ação dos socialista utópicos estava ligada às vicissitudes de um movimento socialista recém iniciado, onde tudo era muito novo; era uma avaliação enérgica, mas bastante expontânea. Nos "marxistas", o veredicto sobre os males da utopia decorria da mera explicação de um quadro de princípios consagrados, expressão de um patrimônio teórico e político que deveria ser preservado a qualquer custo.

O ponto de partida de Marx era "uma metralhadora giratória": Ele preconizava "uma crítica sem consideração de espécie alguma a tudo que existe". Os "marxistas" do século XX, criticavam o "capitalismo", o "imperialismo", porém tomavam muito cuidado para não danificar o "campo socialista", os "movimentos de libertação nacional", as "democracias populares", os "partidos de vanguarda do proletariado".

Houve sem dúvidas exceções. E é interessante observarmos que no campo do pensamento da esquerda foram os pensadores que nadaram contra a correnteza, que pagaram o duro preço do isolamento, que nos proporcionam hoje, no final do século, após a derrocada da União soviética elementos instigantes para empreendermos uma nova reflexão sobre o papel da utopia e dos anseios de transformação da sociedade.

Vários nomes nos vem rapidamente à lembrança. Lukacs, de História e Consciência de Classe, por exemplo, com sua concepção utópica de um movimento operário capaz de realizar o sonho hegeliano do sujeito-objeto idêntico. O Horkheimer que teorizava sobre a verdade refugiada num pequeno grupo de intelectuais rebeldes, zeladores do pensamento crítico. Walter Benjamim, que nos lembrava que "cada segundo é a porta estreita por onde o messias pode entrar". Com todos seus eventuais exageros, esses filósofos contribuíram e ainda contribuem: Para o revigoramento das iniciativas daqueles que procuram extrair as conseqüências da constatação de que o capitalismo não vai morrer de morte natural (a sua superação depende de nós).

A utopia é um ingrediente essencial desse revigoramento. E quem formulou essa idéia mais incisivamente foi, com toda probabilidade, o filósofo Ernest Bloch. Nada mais justo, então que encerremos com o autor do "Princípio Esperança" nossa sumária abordagem do tema da vitalidade da utopia no começo do novo milênio. Bloch propõe um conceito bastante amplo de utopia. Para ele, a dimensão utópica no pensamento é a expressão de uma força real que exige a superação, a "transcendência" do que está explicitado e construído no presente. Segundo o eloqüente pensador alemão, somos seres "carentes", precisamos de algo que não temos, e essa é a origem de uma "consciência antecipadora" que nos caracteriza. A utopia está ancorada nessa consciência antecipadora e pode ser dividida em "utopia concreta" e "utopia abstrata". A utopia concreta possui um ímpeto "subversivo" e já nasce comprometida com o anseio que os homens tem de se l libertarem das condições coisificadas em que vivem.

Na análise de Bloch, o "marxismo" tem uma "corrente quente" e uma "corrente fria". A primeira dá conta da aspiração apaixonada por transformar o mundo, incita ao entusiasmo, à luta; a segunda, refere-se à necessidade de avaliar com rigor científico as condições objetivas e as condições subjetivas em que os homens vivem e atuam. Essa observação de Bloch a respeito do "marxismo", a nosso ver, vale como um todo, quaisquer que venham a ser as formas por ele assumidas no início do novo século.

Parece-nos quase impossível imaginar uma esquerda eficaz que não dependa dessas duas correntes, a "quente" e a "fria". Quer dizer: Que não precise da Ciência e da Utopia. O pensamento de esquerda recordará a advertência do poeta Bertold Brecht, no epílogo da peça "Santa Joana dos Matadouros" :

"Duas almas moram / no teu peito humano, / nas entranhas tuas.
Evita o insano / esforço da escolha: / Precisas das duas
".

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